sábado, 29 de outubro de 2011

Na direção do amor


Não fala. Não se explica. Não se vê e muito menos se apalpa. A sua dimensão não cabe na própria palavra de definição, nem há palavras exactas que o definam. Não se sabe porquê nem se sabe o sentido na sua existência. Não tem limites quantificáveis nem padrões comportamentais a serem seguidos. Não é incógnito, não é um mistério nem um mito. Ele existe na sua real personificação em actos e euforias sentimentais. Fala-se dele soletrando uma palavra, mas essa mesma palavra é tão vazia de conteúdo que nem dele sabe falar na sua plenitude, apenas estabelece uma forma verbal para que possa ser identificado. É muito mais que isso, muito mais que palavras e conceitos. Vai para além das teorias e conversas abstractas. É superior ao desejo humano de egoísmo social estabelecendo pontes entre impossíveis. Não tem cheiro nem cor, pode ser todas as cores ao mesmo tempo, e nesse mesmo tempo não ser nenhuma. Pode tudo e o impossível. Fazemos uso dele mesmo sem sequer ser suposto estar a senti-lo!
Não avisa. Surge e instala-se. Sente-se. É a única coisa que é real e coerente dizer-se. Sente-se. A partir deste ponto, nada mais é igual, nada mais é concreto, nada mais é plausível de se previsível. Ficamos subjugados à sua vontade e na qual vamos vivendo segundo a sua rota. Ficamos inconscientes de acções, mas conscientes de que queremos viver com ele para sempre, apesar de negarmos vezes sem conta a sua grandiosidade, pois torna-nos mais vulneráveis. Apesar de fazer doer bem fundo e de levar a insanidade à exaustão, sem ele não saberíamos viver. Apenas sobrevivíamos dia após dia sem conteúdo afectivo, onde as coisas perderam o brilho natural de serem amadas, porque se ele não existisse, não haveria o motivo para se amar. A dor que ele nos deixa não é mais que um bónus de sabedoria que nos permite sentir realmente vivos. Não faria sentido viver sem ele apesar do seu sentido não ser perfeitamente compreendido. Apenas sabemos que aquela sensação exclusivamente pessoal, faz-nos sorrir, faz-nos querer, faz-nos tentar, faz-nos não desistir quando tudo à volta perdeu a vontade, faz-nos querer, faz-nos ser felizes, mesmo não sabendo bem usá-lo em forma de expressão. Só sabemos que estamos com ele naquele momento mortífero em que o sentimos.
Quase que magoa a garganta no nó que se forma, nauseados de encantamento ficamos perante aquela figura, ficamos parados no tempo, naquele momento visual que tudo parece ser pequeno face ao que sentimos, onde questionamos tudo, mesmo a nossa real existência. É estranho e contraditório. Sentimo-nos estranhos, irreconhecíveis ao nosso espelho interior. Frágeis na sua presença, triste e vazios sem ele. É maleficamente tenebroso quando não tem forma de retorno. É triste por nos tornar tristes, perigoso por nos controlar os actos, é alheio a quaisquer éticas sociais. Mas é demasiadamente bom de ser negado, de ser ignorado. É avassaladoramente saboroso mesmo no seu lado imperfeito para deixar de ser sentido. Por ele fazemos tudo, sem ele somos nada. Não vale de nada palavras complexas e rebuscadas para o tentar exprimir. Ele é a complexa forma da simplicidade traduzida em afectos. Tudo se resume ao amar e ser amado. A sua exuberante simplicidade é que nos faz ser complexos perante tal força sem definição. Não vale a pena tentar perceber ou questionar, e muitos menos tentar explicar em forma de frases sem sentido directo de interpretação. Apenas se deve sentir e vivê-lo. De outra forma não saberemos viver com ele, e sem ele não se vive o expoente máximo da felicidade. Ele, na primeira pessoa a que chamam Amor.

Ana Soares da Silva Rodrigues Neto, in 'Textos de Amor – Museu Nacional da Imprensa'

Inside


Quando se ama não é preciso entender o que se passa lá fora, pois tudo passa a acontecer dentro de nós.

(Clarice Lispector)





sexta-feira, 28 de outubro de 2011

Voar


Não suporto gaiolas, jaulas e quaisquer outros tipos de prisão.
As aves foram feitas para voar, ainda que o céu esteja cheio de abutres,
porque não há nada mais triste que o canto de uma ave enclausurada.
Voar é deixar-se ir na brisa do vento e chegar onde se quer chegar...

terça-feira, 25 de outubro de 2011

É o meu inferno, é o meu paraíso


Era uma vez um lugar com um pequeno inferno e um pequeno paraíso, e as pessoas andavam de um lado para outro, e encontravam-nos, a eles, ao inferno e ao paraíso, e tomavam-nos como seus, e eles eram seus de verdade. As pessoas eram pequenas, mas faziam muito ruído. E diziam: é o meu inferno, é o meu paraíso. E não devemos malquerer às mitologias assim, porque são das pessoas, e neste assunto de pessoas, amá-las é que é bom. E então a gente ama as mitologias delas. À parte isso o lugar era execrável. As pessoas chiavam como ratos, e pegavam nas coisas e largavam-nas, e pegavam umas nas outras e largavam-se. Diziam: boa tarde, boa noite. E agarravam-se, e iam para a cama umas com as outras, e acordavam. Às vezes acordavam no meio da noite e agarravam-se freneticamente. Tenho medo – diziam. E depois amavam-se depressa e lavavam-se, e diziam: boa noite, boa noite. Isto era uma parte da vida delas, e era uma das regiões (comovedoras) da sua humanidade, e o que é humano é terrível e possui uma espécie de palpitante e ambígua beleza.

Herberto Helder


domingo, 23 de outubro de 2011

Quase de nada místico



Não, não deve ser nada este pulsar
de dentro: só um lento desejo
de dançar. E nem deve ter grande
significado este vapor dourado,
e invisível a olhares alheios:
só um pólen a meio, como de abelha
à espera de voar. E não é com certeza
relevante este brilhante aqui:
poeira de diamante que encontrei
pelo verso e por acaso, poema
muito breve e muito raso,
que (aproveitando) trago para ti.

Ana Luísa Amaral

quinta-feira, 20 de outubro de 2011

I love you more than ________


Já que se há de escrever, que pelo menos não se esmaguem com palavras as entrelinhas.

Clarice Lispector




quarta-feira, 19 de outubro de 2011

Aisthésis


A sensibilidade é algo absolutamente inútil quando não te leva a lado nenhum.
Ou quando não traz o tudo até ti. 
Olho as coisas e vejo tantas outras a partir das que olho.
Cadeias de sentidos, presas por laços de seda, leves e desamarráveis.
Outras por correntes de ferro, enleios de aço, que nada pode separar.
A impossibilidade é um cenário dantesco para quem tem sensibilidade... 
E a sensibilidade é um defeito grotesco para quem a esperança é vã...

terça-feira, 18 de outubro de 2011

Ars est celare artem


...the moon gazed on my midnight labours, while, with unrelaxed and breathless eagerness, I pursued nature to her hiding-places...

Mary Shelley

sábado, 15 de outubro de 2011

You are here


This nothingness that feeds upon itself:
Pencils that turn to water in the hand,
Parts of a sentence, hanging in the air,
Thoughts breaking in the mind like glass,
Blank sheets of paper that reflect the world
Whitened the world that I was silenced by.

There were two years of that. Slowly,
Whatever splits, dissevers, cuts, cracks, ravels, or divides
To bring me to that diet of corrosion, burned
And flickered to its terminal.--Now in an older hand
I write my name. Now with a voice grown unfamiliar,
I speak to silences of altered rooms,
Shaken by knowledge of recurrence and return.


Weldon Kees


quinta-feira, 13 de outubro de 2011

Ondulação


Amo-te porque não me amo inteiramente.
O que me faz falta é infinito
mas tu és do bem que me falta
o enigma onde se condensam
a terra e o sol, o ar, as águas invioladas
e tenho a boca cheia de música
ondulação do teu silêncio.

Casimiro de Brito

terça-feira, 11 de outubro de 2011

Oscilações



"E vocês sabem o que é um sonhador, cavalheiros?
É um pecado personificado, uma tragédia misteriosa, escura e selvagem, com todos os seus horrores frenéticos, catástrofes, devaneios e fins infelizes...
Um sonhador é sempre um tipo difícil de pessoa porque ele é enormemente imprevisível: umas vezes muito alegre, às vezes muito triste, às vezes rude, noutras muito compreensivo e enternecedor, num momento um egoísta e noutro capaz dos mais honoráveis sentimentos... não é uma vida assim uma tragédia?
Não é isto um pecado, um horror? Não é uma caricatura?
E não somos todos mais ou menos sonhadores?"

Fiodor Dostoievski

segunda-feira, 10 de outubro de 2011

Está gente sem estar...


Neste comboio longo, surdo e quente,
Vou lá ao fundo, marco o Ocupado.
Penso em ti, meu amor, em qualquer lado.
Batem-me à porta e digo que está gente.

(Pedro Tamen)

terça-feira, 4 de outubro de 2011

Peixes


O sono dos peixes está para além da imaginação. Mesmo no recanto mais sombrio do lago, entre os juncos, descansam vigilantes: permanecem na mesma posição durante uma eternidade e é absolutamente impossível dizer que repousam com a cabeça numa almofada.
Também as suas lágrimas são como um grito no deserto — inúmeras.
Os peixes não conseguem exprimir o seu desespero. Isto justifica a faca embotada que avança ao longo da espinha rasgando as lantejoulas das escamas.

Zbigniew Herbert - Escolhido pelas Estrelas - Antologia Poética
Related Posts Plugin for WordPress, Blogger...